quarta-feira, 18 de abril de 2018

ARTIGO - Desamparo (AGA)


DESAMPARO
Alana Girão de Alencar*




Todos os dias, dou por mim a acreditar que a arte transmite um saber que se antecipa, como dizia Lacan, e assim, rendo-me inevitavelmente à poesia, a qual parece denunciar de forma escancarada a insensatez que estamos assistindo, vivendo e sofrendo na política do nosso País.

Alguma coisa está fora da ordem”1 e, indiscutivelmente, a nossa “piscina está cheia de ratos”2. E, lamento, do que vejo: uma histeria desenfreada a apontar discursos perfurantes, como se houvesse a possibilidade de instaurar a culpa do caos na própria ausência, projetando soluções partidárias como se a estrutura perversa obedecesse ao regime democrático. Sim, Cazuza, nos resta “pedir piedade... pois há um incêndio sob a chuva rala, somos iguais em desgraça”3.

Sigo lendo e relendo matérias críticas, soterradas de desabafos, sobre políticos, ministros, juízes, denúncias, operações, golpes, injustiças e tudo o quanto   importa... E, de maneira não menos surpreendente, sempre me deparo com a conclusão lógica de ficar cara a cara com a proporção desmedida do nosso desamparo.

Rasga-se a Constituição, burlam-se deveres, abusa-se de direitos, corrompe-se a esperança. Nosso circo de miséria, agora, dilata a olhos nus, nos acorrenta...  Põe-nos aos sobressaltos de duvidar do futuro. Raul  Seixas   havia   alertado   que sempre houve ladrões, maquiavélicos e safados”4. Só não previu por quanto    tempo   prolongar-se-ia  esse   “hoje em dia” em que “ no  mesmo  ser direito que traidor. Tudo é igual, nada é melhor”5.

Num desses textos, como de espanto, li que “Marielle é um cadáver fabricado”6, e de impulso indaguei sobre as armadilhas construídas pelo arcabouço das palavras. Atirar fábulas em histórias reais, sofridas, de minorias que gritam queixas de uma sociedade adoecida, me parece despencar de qualquer bom-senso rumo ao desrespeito pungente.

Marielle, antes de ser cadáver, era gente, voz... E, ao passo que os passos seguem, vozes se calam, medos florescem, cordeiros endiabrados assumem o controle anárquico. Tudo às claras, sem vergonha na cara, sem pudor... Sádicos gozam como se houvesse triunfo. Receio ter chegado ao tempo em que a migalha tida   como   luxo   serve   de  teia ao compartilhamento da dor dos humilhados.

Não é à toa que imagens de Oscar Maroni exibindo sua natureza cruel voltam a macerar meus pensamentos. Um libertino vulgar angariando mérito por patentear a falência da lei. Ele não estava só. Havia para quem direcionar o seu olhar oco. Havia para quem responder todo esse descontrole político que enfrentamos. Estamos embarcados no Metrô Linha 743 sem que tenhamos nos dado conta. Sem que saibamos em que parada descer.

E assim, em Pessoa, sigo questionando: “As injustiças da Natureza, vá: não as podemos evitar. Agora as da sociedade e das suas convenções – essas, por que não evitá-las?









NOTA DO EDITOR

A psicanalista e poetisa Alana Girão de Alencar, das mais novas e mais jovens aquisições da ACLJ, estreia no Blog com um texto analítico do dramático momento nacional.

Para tanto, a autora faz uma interessante fusão da ciência que domina com a poética que exercita, lançando mão de citações contemporâneas de cunho filosófico, que vão de Cazuza a Fernando Pessoa, passando por Caetano Veloso e Raul Seixas. Que seja bem-vinda e que seja constante.

Como o artigo veio inominado, atribuímos-lhe como título uma palavra do texto que bem sintetiza o tema manejado.

Não obstante traçados de forma escorreita, e dotados de estética estilística, a Editoria se permite realizar o copidesque necessário aos textos selecionados, de modo a que se compadeçam da forma padrão de seu Manual de Redação Profissional.




COMENTÁRIOS

A frase de Fernando Pessoa com que Alana arremata o seu artigo, excerto do livro “O Banqueiro Anarquista”, de 1922, encerra todo o drama da desigualdade social, bem como a inquietação ideológica que dele deflui e que vem angustiando e dividindo a humanidade.

A Natureza é injusta, admite o poeta, na conclusão agnóstica que soaria aos místicos como dizer que Deus é iníquo. Ilustra com perfeição a assertiva filosófica examinada o comentário revoltado que ouvi de uma jovem graciosa certa vez, ante a imagem blasé de outra, muito mais bela: “Eu acho isso tão injusto!”. 

Pessoa indaga  e Alana reverbera a indagação  sobre como poderia a comunidade universal evitar que um nasça belo e o outro feio, seja um são e o outro débil, um astuto e o outro néscio, e, pior ainda, que este último, por vezes, evolua socialmente e o outro não, embora a  lógica indicando  o oposto – tudo à matroca do binômio sorte/mérito.   

Ora, a concepção da existência de Deus se funda exatamente no entendimento de que seja Ele o equalizador moral das condições materiais díspares que a Natureza impõe a todos, que são de fato inescapáveis.

Os devotos esperam ser possível contornar espiritualmente as diferenças naturais por meio da fé, do amor universal e da Justiça Divina – quem sabe no sentido de que a moça menos dotada de encantos possa prosperar por méritos próprios mais que a outra, na sua vida afetiva e social.

Incréus por princípio, portanto infensos a essa solução fideísta e hipotética – mas, aferrados ao desiderato de alcançar a equidade material humanitária – os socialistas erigem métodos políticos que pretensamente possam promover a igualdade social indistinta e distribuir felicidade.

Pergunta-se: Existem essas fórmulas mágicas com o condão de contornar as iniquidades naturais, ou os desígnios divinos, para além do determinismo da sorte de cada qual, e de sua inata capacidade de se superar e evoluir pessoalmente, se destacando ainda mais? Somo-me a Pessoa e a Alana nessa dúvida profunda.

Reginaldo Vasconcelos


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Alana, com fina sensibilidade e uma mente que não se queda aos “pre” conceitos, aos rompantes de uma sociedade, que em meio as alienações, insensatez, inverdades e fraudes leva seu povo a se sentir perdido, exara, declara de forma poética e filosófica sua inquietude. Amei! Simplesmente, perfeito!


Cláudia Nadir


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Texto maravilhoso! Que apanhado de música, crítica, grandes nomes e link de atualidade...


Suelen Girão


4 comentários:

  1. Alana, com fina sensibilidade e uma mente que não se queda aos “pre” conceitos, aos rompantes de uma sociedade, que em meio as alienações, insensatez, inverdades e fraudes leva seu povo a se sentir perdido, exara, declara de forma poética e filosófica sua inquietude. Amei! Simplesmente, perfeito! CNAMB 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

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  2. Texto maravilhoso! Que apanhado de música, crítica, grandes nomes e link de atualidade...

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  3. Muito bom! Parabéns pela sua brilhante e psicanalítica leitura do nosso momento que exige de nós essa sua visão para não entrarmos nessa loucura que nos arrasta. Prenúncio de novos tempos de re-leitura de nós mesmos.

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  4. É o espelho da sociedade em que vivemos, da era em que vivemos: a da extrema hipocrisia.
    E justamente nessas épocas que grita mais alta a voz da arte. E se faz necessária a existência de artistas para manter vivos o pensamento, a lucidez e a liberdade.

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