quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

ARTIGO

 OS TEMPOS APENAS MUDARAM, 
MAS A HISTÓRIA...

Por Paulo Maria de Aragão*

No passado, a ação dos portugueses colonizadores e o interesse econômico prevaleceram sobre qualquer outro, exsurgindo a oprobriosa escravidão de índios e negros, autênticas mercadorias, partes de um processo de reificação, que os tornava moedas de troca entre seus senhores. No mercado escravista, a força negra tinha primazia sobre a indígena. Em razão dessa superioridade, deu-se a transmudação do cativeiro de um para outro: a robustez de um negro excedia a de quatro indígenas.


Há de observar-se que, a princípio, a Igreja não foi sensível à escravização, mas com ela condescendeu. Eram os negros caçados como animais ferozes. À hora do embarque, um sacerdote católico borrifava água benta sobre a carga humana amontoada nos porões do navio tumbeiro para que aqui chegasse inteirinha, com a ajuda de Deus. Na travessia cruel do Atlântico, tingiam-se os porões de sangue, e os corpos alimentavam esfaimados tubarões. Um em cada cinco escravos não sobrevivia à longa travessia do continente.



Ainda sob os fortes resquícios coloniais, séculos após, Euclides da Cunha falou da brava figura nordestina do sertanejo, submetida à servidão pelos fazendeiros “opulentos sesmeiros da colônia”, que “usufruem, parasitariamente, as rendas das suas terras, sem divisas fixas”. No relato, esclareceu como apascentavam essas criaturas simples, que se resignavam aos senhores feudais, mormente quando atacadas pelo flagelo da seca (“Os Sertões”. 37ª. ed. Rio de Janeiro: 1995, p. 137-138). Registre-se que, entre 1996 e 2007, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), denunciou a exploração de 47 mil trabalhadores.

Hoje, navios negreiros não mais cruzam os mares. Contudo, o flagelo secular - a escravidão contemporânea - continua espezinhando e anulando a dignidade humana. A cena nordestina é imutável: o saqueio de armazéns, o xiquexique e o mandacaru “enganando a fome”, a falta de água potável, trens e carros-pipas levam água contaminada aos locais mais atingidos pela estiagem. À chegada desses paliativos, o sofrimento transforma-se em alegria para um povo sedento e escaveirado, dando a falsa aparência de redenção. É deprimente a distribuição de cestas básicas: uma festa de “graças a Deus”, de procissão, de preces, de rogações públicas e de exaltação aos governantes.



Persiste, assim, a exploração do homem não alcançado pelo chicotaço (há dúvidas), porém pelo açoite moral; é uma escravidão tão odienta quanto a colonial, que diz não ao direito à escola, moradia, saúde, lazer, trabalho digno e remunerado. Desamparados, mendigam nas ruas crianças, deficientes físicos e idosos, afora os que sucumbem nos lixões, no mundo das drogas, da prostituição. Outros escapam plantando e colhendo sob a ameaça de capatazes, em condições subumanas extremas. São desigualdades envilecedoras e monstruosas que não envergonham a sociedade, que acolhe em suas entranhas os que batem em retirada dos sertões em brasa, para engrossarem a violência nos centros populacionais urbanos.

De permeio, intensificam-se as trocas de benesses eleitorais com o dinheiro público, no grupo social sem consciência, carcomido pelo verme do corrompimento. Entre os proveitos obtidos do flagelo, realça-se a compra de cadeiras legislativas, matriz gestatória dos vícios da política. E da mesma maneira como os indivíduos as compram, eles podem ser comprados, vendem o corpo e alma por qualquer dinheiro. Sem honradez nem princípios, nunca deixam de exercer a perniciosa influência sobre as camadas inferiores da sociedade. Mudam-se os tempos, mas a história continua a mesma.

* Paulo Maria de Aragão
 Advogado e professor
Membro do Conselho Estadual da OAB-CE
Titular da Cadeira de Nº 37 da ACLJ 

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