ENCRUZILHADAS
HISTÓRICAS
1ª Parte
Rui Martinho Rodrigues *
Considerações
preliminares
Transformações
históricas, profundas e abrangentes podem modificar os costumes, a economia, a
organização social, jurídica e política, reconfigurando a correlação de forças
entre as potências no pesado jogo internacional da geopolítica. Assim, embora a
todo momento aconteçam mudanças, certas ocasiões caracterizam transições de
períodos históricos. A queda de uma árvore não é um acontecimento histórico.
Mas se o tronco caído provocar o desvio de um caminho de formigas na direção de
uma grande plantação, provocando uma grande perda na colheita, então a queda da
árvore será um acontecimento histórico, conforme Barbara Tuchman (1912 – 1989),
na obra A Prática da História.
A
solução de problemas pode induzir mudanças dignas de um novo período. O cultivo
da terra transformou nômades em sedentários. A irrigação deu lugar aos impérios
do regadio. Darcy Ribeiro (1922 – 1997), na obra O Processo Civilizatório, refere-se estas duas mudanças como primeira e segunda
revolução verde. A escrita e a fundição de metais também são exemplos de
inovações indutoras de transformações históricas profundas. A solução de
problemas, mais do que o conflito, desencadeia mudanças. A produção de um
hormônio sintético, permitindo o controle da ovulação e disponibilizando
contraceptivos é mais um exemplo de solução de problema mudando o mundo.
Não
só na produção de bens materiais a solução de problemas muda o mundo. Os gregos
adotaram um processo decisório para a solução de problemas políticos, baseado
na tentativa de debate racional e votação, renunciando ao uso da força,
conforme Olivier Nay (1968 – vivo), na obra História das ideias
políticas. Profundas mudanças na organização política e jurídica nasceram
daí, evoluindo para a democracia. O fenômeno político é ação finalista do
homem, admitindo-se que este exerça o papel de sujeito dos acontecimentos.
Tenha, juntamente com as demais influências, uma natureza humana, além da
constelação de fatores que promovem a dinâmica os fatos e atos. A influência
dos aspectos socioculturais, as condicionantes do chamado poder suave e os
efeitos da solução de problemas materiais; ao lado da coerção do chamado poder
duro nos condicionam parcialmente; mas existe a natureza humana e a História
não é despersonalizada.
Estabelecer
os marcos da periodização histórica sofre limitações decorrentes dos problemas
da diacronia e da sincronia histórica. A distância enseja uma visão mais ampla
da montanha, conforme de aconselha Nicolau Maquiavel (1469 – 1527), na
obra O Príncipe. É mais fácil demarcar períodos históricos depois
de muitos anos, porque os desdobramentos dos fatos e atos podem ser observados
com o passar do tempo. As, rápidas, profundas e abrangentes transformações em
curso talvez sejam as maiores ocorridas em tão poucos anos. É oportuno
reconhecer um novo período histórico. Há quem fale em pós-modernidade (Gilles
Lepovetsky, 1944 – vivo, em A Sociedade Pós-Moderna); como em
sociedade líquida (Zygmunt Bauman, 1925 – 2017, em Sociedade Líquida)
e em sociedade global (Marshall McLuhan, 1911 – 1980, em A Aldeia Global).
O
reconhecimento do mundo emergente
As
civilizações nascem, crescem, fenecem e morrem (Arnold Toynbee, 1889 – 1975,
em Um estudo da História). É possível definir o fim de um período e
o início de outro pela morte e o nascimento de uma civilização. Após o fim de
um período, pode haver uma indefinição anárquica. A fase anárquica, para quem
entende que o caos é insuportável por muito tempo, seria uma transição seguida
por uma nova ordem. Pergunta-se: (i) a civilização ocidental morreu ou (ii)
está se adaptando a novas realidades? Dizer que ela morreu ou permanece viva
exige que se tenha uma ideia mais ou menos discernível do seria tal
civilização.
A
civilização ocidental pode ser descrita como uma mistura (a) da tradição
cosmocêntrica dos gregos, com a Filosofia teorética, misturada ao (b)
Direito e ao pragmatismo romano, temperado com (c) o teocentrismo da
tradição judaico-cristã. A sobrevivência da civilização ocidental seria a
permanência destas influências. A busca e o reconhecimento de um logos
impessoal, universal e cósmico, herdado da civilização grega, que buscava
superar a simples opinião (doxa) está em crise. A razão dedutiva do silogismo;
somada ao raciocínio indutivo, sob a vigilância epistemológica da lógica
aristotélica, tem sido repudiada.
A
razão é questionada como instrumento de dominação ou em nome da dialética que
Lucio Colletti (1924 – 2001) nomeava como senhora de costumes cognoscitivos
fáceis. A razão impessoal tem sido questionada por uma razão identitária
antropocêntrica. O componente grego da civilização ocidental declina. A
subjetividade assume um protagonismo antagônico à superação da doxa. Adota um
voluntarismo que chega a negar realidades objetivas em nome da subjetividade.
Homens se dizem cachorros prisioneiros em um corpo humano e por isso exigem
direitos. Contraditoriamente, porém, cresce o repúdio ao subjetivismo de quem
condena as manifestações da contracultura. A censura alega combate ao
“preconceito”, mas combate ao subjetivismo do outro.
A
permissividade cognitiva que permite aos novos gestores da moral negar a
realidade objetiva, não se aplica aos dissidentes. Seria uma nova ética? Qual
seria o seu fundamento de validade? Não é teocêntrica. Não pode invocar a
vontade divina. É cosmocêntrica? Neste caso não poderia dizer que a
objetividade de um corpo humano cede lugar à subjetividade canina. Então só
pode ser antropocêntrica. Neste caso falta dizer qual é o critério de validação
que pode dirimir as divergências ou conflitos entre subjetividades. Seria a
maioria? Faríamos plebiscito para decidir se um cachorro pode ter um corpo
humano, substituindo juízo de realidade por juízo de valor? Isso merece outra
reflexão.